O CUSTO DE UMA CURA
Texto por Hanna Basset
Fotografias por Zhou Zhaungchen
Quando a epidemia da AIDS assolou o mundo no final dos anos 90, o governo brasileiro entrou em ação para se tornar o líder global na produção de medicamentos genéricos. Atualmente, o Brasil se encontra em uma situação semelhante, em que um novo medicamento para hepatite C, revolucionário, porém proibitivamente caro, aguarda aprovação pelo Ministro da Saúde.
Pela vida da ativista e química, Eloan Pinheiro, junto às experiências de grupos da sociedade civil, advogados e produtores de drogas e medicamentos, a presente história considera as semelhanças e diferenças entre o movimento resultante da epidemia da AIDS e a luta atual pela obtenção de um tratamento acessível e efetivo contra a hepatite C.
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Eloan Pinheiro senta-se na borda do sofá amarelo, situado em sua sala de estar, virando delicadamente as páginas de um compilado que repousa sobre a mesa de café de madeira diante dela. Colada a cada página rosa desbotada está uma nota manuscrita de seus ex-colegas da Organização Mundial de saúde.
“Você fará muita falta. ”
“Eu sou inspirada por sua mistura de paixão, inteligência e determinação. ”
“Continue fazendo barulho e problemas. ”
Sua risada rouca ecoa pela sala de estar depois de ler a última nota. “Eles sempre disseram que eu era estridente”, diz ela balançando a cabeça, seu curto cabelo prateado balançando ligeiramente ao redor de seu rosto bronzeado.
Por mais de trinta anos, Eloan dedicou sua vida a garantir o tratamento acessível do HIV/AIDS, no Brasil e além. Treinada como química, ela iniciou sua carreira trabalhando para uma empresa farmacêutica multinacional, antes de assumir como diretora da que é, agora, a maior fabricante de medicamentos do governo brasileiro. Devido, em grande parte, a seu trabalho lá e, mais tarde, na Organização Mundial de Saúde, o Brasil é agora capaz de garantir medicamentos anti-retrovirais (ARV) gratuitamente para todos os seus cidadãos que vivem com o vírus HIV
Apesar de alegar o contrário, Eloan está apenas aposentada no papel, e não na prática, em que pese completar 70 anos ao final do corrente ano. Estes dias, ela voltou sua atenção para uma nova ameaça à saúde mundial: Hepatite C.
Frequentemente chamada de “epidemia silenciosa” – até 80 por cento dos infectados não experimentam quaisquer sintomas até o começo da falha hepática –, hoje, um milhão e meio de brasileiros são suspeitos de estarem vivendo com hepatite C crônica, com apenas 600.000 conscientes de seus status e recebendo tratamento.
De sua casa, nos subúrbios do Rio de Janeiro, Eloan mantém uma agenda vigorosa, se encontrando com médicos, cientistas, e ativistas que lutam por melhorias para as pessoas afetadas pela hepatite C.
Os tratamentos disponíveis no Brasil causam efeitos colaterais debilitantes e exigem longos regimes, curando apenas 45 por cento dos casos – mas há uma drástica mudança no horizonte; um desenvolvimento tão grandioso que é uma reminiscência dos avanços e descobertas relativos à HIV/AIDS na década de 90. Uma onda de novos tratamentos está agora ganhando espaço no mercado, e um deles, particularmente, tem atraído atenção em âmbito mundial para o tratamento de hepatite C. Seu nome é Sovaldi, e pode curar a hepatite C e, até 90 por cento dos pacientes.
“Pelo ponto de vista terapêutico, está praticamente mudando a forma como tratamos a hepatite C”, diz Azzi Momenghalibaf, da “Open Society Foundation”, uma rede de tomada de concessões que incide sobre a formulação das políticas públicas. “O consenso é que você não quer uma patente que torna possível a produção de cópias acessíveis dessa droga”. O desafio? O preço da Sovaldi, de $ 84.000,00 por um tratamento de doze semanas.
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Quando a epidemia do HIV/AIDS varreu o mundo nas décadas de 80 e 90, o Brasil se encontrou num embate contra uma epidemia de saúde sem soluções ou um plano de tratamento viável para seus cidadãos. Como as empresas farmacêuticas começaram a liberar tratamentos ARV que tinham o potencial de reduzir dramaticamente a taxa de morbidade, o sistema de saúde do Brasil foi incapaz de arcar com as despesas do tratamento pelos preços propostos pelas empresas.
Eloan teve parte nesta história desde o início e ganhou uma perspectiva impar por trabalhar para praticamente todos os lados envolvidos: uma companhia farmacêutica, o governo, grupos da sociedade civil e ONGs. Criada em uma família pobre, Eloan foi capaz de frequentar universidade no Rio de Janeiro nos anos 60 para estudar química, após receber bolsa de estudos e realizar trabalhos secundários, como limpar os laboratórios da escola por um dinheiro extra. Quando a ditadura militar se instalou, em 1967, ela foi forçada ao exílio interno, devido ao seu papel conhecido como uma ativista social no campus. Depois de três anos escondida na região central do Brasil, ela terminou sua licenciatura em Brasília e foi contratada pela Winthrop Pharmaceuticals, uma empresa farmacêutica norte-americana.
“Eu comecei a minha carreira com muita força”, ela afirma, falando sobre sua primeira posição como gerente da Winthrop. Mas ela batalhou para reconciliar suas crenças morais com sua nova carreira. Em um tempo em que o Brasil tentava encontrar uma forma de prover acesso a preços acessíveis aos ARVs, ela se viu trabalhando para o sistema que propagava o “status quo”.
“Meu sentimento quando eu estava trabalhando para eles era de que eles só desejavam rentabilidade”, afirma com a consternação pairando sobre seu rosto. “Eles não olham se a medicina é acessível ou não. Eu vi que eles rejeitavam produtos que não tinham alta rentabilidade, ainda que o produto fosse útil para o povo. Eles almejam lucro, lucro, lucro”.
À época, apenas ARV e Zidovudine, estavam disponíveis no Brasil e o governo ainda batalhava para encontrar um meio acessível para mais de 100.000 infectados até então. Custando $ 188 por embalagem, apenas alguns da elite dos que viviam com HIV tinham acesso ao tratamento necessário para sobreviver. Em que pese a Winthrop não estar envolvida com a produção de ARV, Eloan sentiu que precisava alterar seu curso.
“Foi um momento em que eu decidi mudar muitas coisas em minha vida. Eu estava muito em conflito, por que ao mesmo tempo em que eu lutava por uma sociedade melhor, eu trabalhava para companhias multinacionais. Eu trabalhava pelo dinheiro. Eu acho que você precisa ter o pressentimento de que você deveria fazer algo independentemente da situação. É emocional. É racional, mas é também emocional. Estas pessoas (da Winthrop) não tinham os sentimentos necessários para servir as pessoas corretamente. [Minha vida] era contraditória. Então eu decidi partir”.
Numa manhã, em 1989, Eloan chegou na Winthrop e percebeu que havia deixado seu cartão identificador em casa. O guarda de segurança na entrada disse que ela não poderia entrar sem seu cartão, apesar de conhecê-la e saber que era gerente. Essa foi a gota d’água para Eloan. Quando um trabalhador dos recursos humanos chegou para mediar a situação, Eloan disse que ela estava se demitindo de seu cargo. “Eu disse: olha, ‘eu preciso entrar porque preciso pegar minhas coisas. Eu vou pedir minha dispensa”. Eles pediram que ela mudasse de ideia, mas ela já havia se decidido. “Foi um dia muito, muito fantástico para mim”, diz, radiante.
Até então, o setor público estava bem ciente do trabalho de Eloan e estava necessitado de alguém com seu conhecimento para ajudar a consertar problemas que assolavam a indústria de fabricação de drogas local. O governo estava tentando atender às demandas do país para ARVs através da produção local, mas para fazer disso uma realidade, seria necessário um novo portfólio de medicamentos, bem como a infra-estrutura para produzi-los. A experiência de Eloan no setor privado foi exatamente o que o governo precisava. A Fundação Oswaldo Cruz, uma instituição científica de investigação e desenvolvimento no Rio de Janeiro a contratou como consultora para o seu laboratório farmacêutico, o FarManguinhos.
Ela não tinha a menor ideia do que estava se envolvendo.
“Quando eu cheguei em FarManguinhos, eu fiquei em choque”, diz Eloan, relembrando aquele primeiro dia, 24 anos atrás. A instalação era dramaticamente inferior à que ela havia acabado de deixar em Winthrop. “Você não pode imaginar o que eu encontrei. Estava absolutamente destruída. Havia acumulação de água salina no terreno. Haviam cabos expostos por todos os lados. A instalação deveria ser reconstruída, sério. Eu disse ‘não vou ficar aqui’. Tive sucesso na indústria privada. Eu fui reconhecida como uma boa técnica”.
Mas Eloan decidiu ficar e o que aconteceu sob seu mandato como diretora executiva redefiniu a produção de medicamentos genéricos no Brasil. FarManguinhos foi transformada naqueles primeiros anos sob a orientação de Eloan. As tecnologias e métodos mais modernos foram reunidos na medida em que a facilidade de produção renasceu.
“Tudo o que eu pude fazer para aprimorar o sistema na FarManguinhos, eu tentei fazer. Tudo isso até o acordo TRIPS e o problema com a AIDS surgir”.
No dia primeiro de janeiro de 1994, a Organização Mundial do Comércio efetivou os aspectos relacionados ao comércio dos Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPs). Isso afetou uma ampla gama de material patenteável, incluindo medicamentos, como o tratamento ARV. Uma das maiores mudanças causadas pelo acordo TRIPS foi que os medicamentos receberiam termos de patente de pelo menos 20 anos, impedindo a produção de medicamentos genéricos patenteados durante esse período pelos fabricantes de genéricos. O Brasil foi solicitado a atualizar suas leis de patentes e os planos de produção para ficar em concordância com o acordo TRIPS até 2005. Isso significava apenas dez anos para produzir genéricos. O tempo subitamente começou a passar mais rápido.
Isso mudou o curso do futuro da FarManguinhos, e do país, de forma dramática. No outono de 1996, o governo brasileiro trabalhou para aprovar legislação que garantiria o acesso universal e gratuito aos ARVs através do Sistema Nacional de Saúde. O governo decidiu rejeitar o consenso do tempo, que considerou que a produção local não era nem rentável nem sustentável, e escolheu a FarManguinhos para liderar o caminho.
Quando o ministério me ligou e disse: 'você precisa fazer medicamentos genéricos contra HIV', eu disse 'O quê?!' Você pode imaginar? Foi tão louco. Eu estava reconstruindo a FarManguinhos. Tive a experiência de trabalhar por 16 anos na indústria farmacêutica, mas na FarManguinhos não tinha experiência para resolver um problema tão difícil. "
Então Eloan reuniu os colegas “mais inteligentes”, como descaradamente fala, da FarManguinhos e da Fundação Oswaldo Cruz, incluindo químicos, cientistas e trabalhadores. E eles fizeram isso. A equipe pensou em tudo, desde como misturar medicamentos e evitar dosagens irregulares até novos processos de análises e controle de qualidade.
“Então nós estávamos produzindo genéricos. Foi incrível, noites e dias em desenvolvimento; nós fizemos seis [ARVs] em quatro anos. Para nós, foi uma vitória”.
De repente, o Brasil tinha um conhecimento a respeito da epidemia de HIV / AIDS que tinha se espalhado por todo o país por quase 15 anos. Tornou-se uma história de sucesso global para o resto do mundo, provando que a produção local pode ser tanto sustentável e eficaz. Quando Eloan participou de uma conferência da OMS em Nova York no final daquele ano, ela foi recebida como uma campeã.
"A nossa ação foi vista como um bom exemplo para todos, dizendo que você pode produzir genérico para todos. Você pode fazer o genérico. Você pode fazê-lo, e você pode salvar vidas .”
Depois de servir o resto de seu mandato como diretora-executiva da FarManguinhos, Eloan levou seu trabalho à Organização Mundial de Saúde. Como consultora de lá, ela viajou para os países em desenvolvimento ao redor do mundo defendendo a produção local. Como sua pasta de notas de agradecimento atesta, ela fez um grande impacto com a sua visão e carisma. Agora o seu trabalho para garantir ARV a preços acessíveis é praticamente completo em seu país de origem.
Atualmente, o HIV / AIDS é uma doença crônica, não ameaçando as vidas de todos os brasileiros que infecta. FarManguinhos continua a produzir e fornecer os tratamentos ARV garantidos pelo governo para todos os seus cidadãos.
A pergunta que o país enfrenta agora é como vai responder à crescente epidemia de hepatite C dentro de suas fronteiras. Enquanto a consciência global está aumentando, há ainda muito trabalho a ser feito e o sucesso de tratamento do HIV / AIDS estão se repetindo. Mas Eloan está confiante de que é possível.
"O que fizemos para o HIV, a FarManguinhos pode fazer para a hepatite C. Eu sei disso."
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Hoje, a situação do tratamento da hepatite C no Brasil é uma reminiscência dos medicamentos de HIV / AIDS no início de 2000 – o tratamento existe, mas as opções são limitadas, e os efeitos secundários dos medicamentos disponíveis são graves. No Brasil, a droga mais comum da hepatite C é interferon peguilado, um antiviral que deve ser injetado no abdômen do paciente a cada semana. O medicamento vangloria-se de uma taxa de cura limitada de aproximadamente 45 por cento e, embora seja a opção mais eficaz disponível, ele vem com efeitos colaterais debilitantes, desde sintomas de gripe à depressão clínica. Muitos pacientes não podem manter-se com o seu exigente regime semanal, ainda que consigam suportar os efeitos colaterais.
Sovaldi tem o potencial para transformar esse “status quo”.
Mas antes que os consumidores possam ter acessoao Sovaldi, quer sob a sua marca ou seu genérico, o sofosbuvir, a patente da droga deve primeiro fazer o seu caminho através de um labirinto de burocracia do governo e rodadas de negociações entre a empresa farmacêutica e o governo - processos que têm sido conhecidos por levar várias décadas no Brasil.
Os pedidos de patentes começam sua longa jornada para aprovação sob a orientação do Ministério da Saúde do Brasil (ver gráfico). A primeira ronda de testes ocorre dentro de Instituto do Ministério Nacional da Propriedade Intelectual (INPI). O INPI leva em consideração se a patente pendente cumpre determinados requisitos básicos: se a matéria é patenteável, se é novidade, etc. Durante esta fase, o público não é informado da existência da patente pendente, por isso é quase impossível saber o cronograma desta fase. Assumindo que a patente pendente avança através do exame inicial do INPI - e acredita-se que Sovaldi vá avançar, devido à sua taxa de cura sem precedentes - então passa-se a responsabilidade à Agência do Ministério Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), onde será avaliado de acordo com as políticas de saúde do governo. Se a patente não satisfizer as exigências da ANVISA, ela será rejeitada e o processo vai acabar. Se ela os satisfizer, ela será transferida de volta para o INPI para uma última rodada de análise antes de uma decisão final, para aprovar ou negar a patente.
Enquanto na teoria este processo foi feito para ser eficaz, embora um pouco tortuoso, na realidade, restou provado ter falhas graves. Ana Claudia Dias de Oliveira, uma advogada brasileira que tem trabalhado na lei de patentes nos últimos anos, tem visto os pontos fracos do sistema em primeira mão, a começar pelo INPI.
"[O INPI] tem de um a dois anos para olhar para a patente", diz ela sobre uma xícara fumegante de café brasileiro em sua mesa, "mas hoje em dia eles levam de cinco a seis anos ou mais. Eles têm uma carteira, uma extensa lista de pendências. Há 2.000 ou mais patentes pendentes apenas para medicina. Há uma patente brasileira que levou mais de 37 anos. Nosso sistema no Brasil falhou”.
No momento, não há nenhuma palavra oficial sobre a existência de uma patente pendente para Sovaldi circulando pelo Ministério da Saúde, apesar de Oliveira e muitos outros terem um palpite de que ela está em algum lugar do sistema. Sabe-se que, em 2008, a Gilead Sciences apresentou uma série de patentes para Sovaldi em outros países, incluindo os Estados Unidos, onde foi aprovado em dezembro de 2013 pela Federal Drug Administration, com o custo de $ 84.000 para o tratamento de 12 semanas. Oliveira acredita que o Brasil deve ter sido, também, um dos países a receber um pedido de patente este ano. Muito provavelmente, a patente pendente estagnou dentro do INPI.
"Estou certo de que há uma patente no Brasil. Nós apenas não sabemos o número".
Mesmo que os Estados Unidos aprovem a patente da Sovaldi com um preço $ 84.000, o Brasil dificilmente seria obrigado a seguir o exemplo. Tal como aconteceu na década de 1990 com tratamentos de HIV / AIDS, o governo pode iniciar negociações de preços com o fabricante da droga, neste caso, a Gilead Sciences, para reduzir o custo do medicamento.
Enquanto o custo de Sovaldi nos Estados Unidos surpreende e preocupa muitos, a Gilead tem defendido o alto preço do medicamento desde o início. Um argumento é que o custo da pesquisa e desenvolvimento que entra em última análise na produção de uma nova droga, como Sovaldi, é tão grande que o produto final deve ser acompanhado por um preço suficientemente alto para compensar os investimentos iniciais. Esta lógica não tem aplacado muitos adversários, em parte porque poucas empresas farmacêuticas partilham os seus custos de investigação e desenvolvimento com o público, e não alivia qualquer má vontade daqueles que acreditam que nunca deve ser fixado preço fora do alcance das pessoas em necessidade para as drogas. Mas a Gilead também considera o nível macro ao determinar um preço para um novo produto. Por exemplo, uma droga como Sovaldi, com uma tal taxa de cura sem precedentes, tem o potencial de reduzir os custos de longo prazo atualmente associados à hepatite C, como Nick Francis do departamento de assuntos públicos da Gilead explica.
"O sovaldi é mais eficaz e tem menos efeitos colaterais do que os regimes de tratamento anteriores", diz Francis, “resultando não só em benefícios significativos para a saúde dos pacientes, mas também benefícios econômicos substanciais para os pacientes, pagadores e sociedade em geral”.
Francis explica ainda que a Gilead também desenvolveu um esquema de preços que irá acomodar as necessidades de saúde de cada país e os limites econômicos para que os países em desenvolvimento não sejam confrontados com custos indevidos: "É nosso objetivo tornar o Sovaldi acessível no máximo de lugares possíveis, o mais rapidamente possível. Nos países em desenvolvimento, estamos buscando uma série de estratégias para expandir o acesso ao Sovaldi e futuros medicamentos HCV da Gilead, incluindo licenciamento genérico voluntário, negociação de preços direto com os governos locais, preços diferenciados e parcerias com organizações não-governamentais".
Assim, enquanto o Sovaldi cobre $ 84.000 por uma rodada de tratamento nos Estados Unidos, no Brasil pode haver um preço mais baixo devido a este sistema de "preços diferenciados". Segundo este método, os países são divididos em três níveis diferentes com base em prevalência da hepatite C do país e rendimento nacional bruto. O recente lançamento do Sovaldi no Egito destaca este sistema de preços, com o tratamento de 12 semanas no mercado por $ 900. Já que os preços finais são apenas determinados de país a país, uma vez que a patente for aprovada, ainda está para ser visto qual será o preço no Brasil.
Muito provavelmente a patente do Sovaldi será aprovada e começarão as negociações de preços entre a Gilead e do governo, como houve durante as negociações de tratamento do HIV/ AIDS. Só que desta vez, um atoor chave, que não estava antes, estará lá para fazer backup de propostas de preços do governo. Hoje, o governo tem a FarManguinhos pronta para estar por trás disso.
A FarManguinhos está agora com sua instalação em melhor estado, muito longe da instalação dilapidada que Eloan conheceu em seu primeiro dia. Os pisos de concreto são impecavelmente pintados e as máquinas brilham sob a iluminação fluorescente. A cada oito horas, 120 trabalhadores se limpam, usam redes de cabelo e máscaras cirúrgicas enquanto passam seus cartões de identificação dentro e fora de torniquetes metálicos em seu caminho para as linhas de produção. Barris cheios de pó coloridos azul e laranja são organizados em paletas de madeira nas salas de armazenagem cavernosa antes de serem medidos e misturados e colocados em cápsulas para o consumidor. Atualmente, a FarManguinhos tem a capacidade de produzir vinte medicamentos diferentes em suas terras de produção expansiva.
"A FarManguinhos tem a tradição e a estrutura que é favorável [à produção de sofosbuvir ]", diz Marcos Targino, analista da FarManguinhos, "temos todas as condições para produzir. O governo pode colocar a sua confiança em nós ".
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O fato da FarManguinhos, como outras fabricantes de genéricos, estar impedida de produzir comercialmente sofosbuvir durante o período de negociação, o governo é capaz de desenvolver a droga em escala piloto. Ao fazer isso, pode-se dizer ao governo exatamente quanto custaria para produzir o medicamento no mercado interno, o que provavelmente seria menor do que o preço proposto pela Gilead, mesmo sob o plano de preços diferenciados. O governo pode, então, usar essa informação como alavanca para reduzir ainda mais as ofertas de preços da Gilead. Este método de negociação reduziu com sucesso o preço de inúmeros medicamentos patenteados no Brasil na última década, graças às melhorias de produção doméstica promovidas pelo Eloan e seus colegas.
Agora, todos os olhos estão voltados para onde o pedido de patente pode levar o país. Se o governo nega a patente da sofosbuvir, a FarManguinhos vai produzir em massa o genérico. Se o governo aprovar, a FarManguinhos irá produzir o genérico em escala piloto e o governo vai negociar preços em conformidade. Mas há ainda uma outra opção que é menos conhecida e muito mais arriscada para o governo. Existe uma chance de que a FarManguinhos ainda poderia produzir em massa a droga, mesmo se a patente for aceita, isso se o Brasil decidir arriscar sanções internacionais por jogar seu trunfo: a emissão de uma licença compulsória.
A licença compulsória permite que uma parte, como o governo brasileiro, possa produzir um produto patenteado sem o consentimento do detentor da patente - permitido pelo acordo TRIPS, mas promulgada com moderação. Estas licenças podem ser implementadas em condições limitadas, incluindo, mas não limitado a "emergência nacional", tais como a crescente ameaça nacional de saúde da hepatite C. Ao emitir uma licença compulsória, o Brasil seria capaz de negociar preços com a Gilead, caso estes sejam considerados inviáveis. Mas tal movimento ousado não vem sem consequências, como o Brasil aprendeu, há sete anos, quando emitiu a sua primeira licença compulsória.
Em 2007, quando os medicamentos de HIV / AIDS estavam indo pela primeira vez através do processo de análise de patentes sob as novas regras do acordo TRIPS, o Ministério da Saúde do Brasil decidiu emitir a licença da medicação antirretroviral Efavirenz. Isso permitiu que os fabricantes de medicamentos genéricos pudessem produzir o ARV localmente e, assim, reduzir o custo do Efavirenz em cerca de um terço do preço ofertado inicialmente pela empresa farmacêutica, que veio com consequências globais que não foram esquecidas. O Escritório do Representante de Comércio dos EUA colocou o Brasil em sua lista de observação por ter "deficiências graves em direitos de propriedade intelectual."
"O governo brasileiro teme esta posição", afirma Oliveira, referindo-se a seu status de observador obtido anteriormente. "Por isso, eu acho que eles só vão usar essa ameaça para reduzir o preço." A emissão da licença é improvável. A tomada de uma ação tão drástica tende gerar níveis elevados de consciência internacional e envolvimento da sociedade civil, ambos estavam presentes na década de 1990, mas estão atualmente em falta para a hepatite C. "Tem sido difícil ter uma campanha de licenciamento compulsório", diz Momenghalibaf, da Fundação Open Society. "Simplesmente não é uma mensagem muito fácil. O que você quer é trazer a questão ao público. O que muitas vezes você tem são os advogados que estão realmente trabalhando em formação da opinião pública, que, em seguida, colocam pressão sobre o governo para priorizar a questão."
Aprovação de patente. Negação de patentes. Negociação com o governo. O licenciamento compulsório.
Todas essas são opções, mas a partir de agora, elas também são postulações distantes. Afinal de contas ninguém ainda sabe ao certo se a patente foi depositada no Brasil. Milhões de pessoas mais serão diagnosticadas com hepatite C antes de ser tomada uma decisão de patente. "Eu acho que vai levar mais de seis anos até que uma decisão seja tomada", diz Oliveira. "Sendo otimista".
Por agora, todos devem esperar.
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Falando de sua casa, fora do Rio, em uma manhã nublada, Eloan está apreensiva sobre o que vai acontecer nos próximos meses e anos em relação ao tratamento da hepatite C. Embora as condições de tratamento da medicina contra hepatite C seja mais acessível e eficaz o que eram no início de seu trabalho no combate do HIV / AIDS, os obstáculos sistêmicos permanecem. "É quase a mesma coisa que aconteceu há 20 anos, em 1996", diz Eloan. "Pode ser feito. Não é um problema tecnológico; não é um problema financeiro. É um problema político. Se a hepatite C tem muita pressão, o governo vai [negociar um preço acessível]".
Afinal, não é como se a hepatite C fosse uma nova ameaça particular à saúde no Brasil. A doença vem se espalhando pela população ao longo de décadas, e ainda assim o governo não tomou qualquer ação comparável à sua futura decisão sobre a patente da Sovaldi. Para o governo priorizar a hepatite C grupos da sociedade civil devem continuar a fazer pressão, ressalta Eloan, e outros especialistas concordam. Foram observados progressos nos últimos anos, mas grande parte da responsabilidade de manter a hepatite C no centro das atenções nacional recai sobre os ombros dos grupos da sociedade civil da atualidade.
"Não tem sido feito muito pela OMS em relação à hepatite, até mais recentemente", diz Momenghalibaf. "Eu tenho trabalhado com a hepatite C por alguns anos e, quando eu comecei, ninguém falava sobre isso. Agora parece que todo mundo está falando sobre isso em nível internacional.”
Embora Eloan tenha sido capaz de promover mudanças por meio de suas posições como química e gerente, ela afirma que seus recursos são limitados agora. "Eu não posso conduzir mais as mudanças, através das fábricas da FarManguinhos. A única coisa que posso fazer é falar em seminários."
Enquanto Eloan mantém um calendário muito mais substancial do que sua humilde perspectiva implica, a verdade é que o futuro da hepatite C está nas mãos das crescentes "Eloans" - os membros da sociedade civil que estão liderando campanhas públicas e reuniões com o Ministério da Saúde. Eles são os únicos que compartilham o "sentimento" de Eloan, sua obrigação moral de lutar pelo que é melhor para o povo. Eles estão lá fora e vem ganhando força, mas a luta está longe de terminar.
Há muito a ser feito para que as gerações em ascensão possam aprender com a história da medicina HIV / AIDS no Brasil. Se eles se lembram do trabalho e tenacidade de Eloan Pinheiro e têm conhecimento da história da luta para o tratamento do HIV / AIDS no Brasil, então eles também poderão se encontrar sentados confortavelmente em suas salas de estar daqui a vinte anos, relembrando sua vitoriosa luta para garantir uma cura eficaz e acessível para a hepatite C no Brasil.