JOSÉ: O REMÉDIO AMARGO

Texto por Shehryar Nabi
Fotografias por Misako Ono
Vídeo por Samuel Costa

“Se você tomar o xarope doce todos os dias, você não cura o resfriado,” ele disse. “Você tem que tomar um remédio amargo. O mesmo serve para hepatite.”
 

A primeira coisa que você nota sobre a residência de José Siqueira em Niterói são os animais. Um pequeno cachorro com pêlo marrom e preto corre e recebe os visitantes com alguns latidos, enquanto um cão maior, preto, se mantém alerta acorrentado ao poste de madeira. Quando o latido acaba, notam-se os silvos persistentes de doze aves de estimação. Muitos deles pulam de poleiro em poleiro em gaiolas que José mesmo construiu. A plumagem das aves apresenta uma gama de cores – algumas salpicadas com cinza, vermelho e marrom com torsos quase brancos, um pouco das cores das goiabas e bananas que amadurecem nas árvores de onde as gaiolas são suspensas.

A propriedade de José é protegida pela densa folhagem de suas frutíferas e pelos muros altos de seus vizinhos. Seus vizinhos são todos famílias, e muitas vezes ele vai trocar suas goiabas por cocos. Quando as goiabas mais doces são difíceis de alcançar, José, um homem de baixa estatura, puxa os galhos das árvores até que as frutas estejam a seu alcance. Ele consegue forçar os ramos até o chão sem causar nenhum dano a eles.

Pranchas usadas e sucata são abundantes na área externa de sua residência, cuja fundação ele mesmo construiu. José, agora com 64 anos, foi carpinteiro por 34 anos – mais do que metade de sua vida. Seus amigos de trabalho o chamam pelo apelido, Pimentão. Em um dia típico, ele acordaria as 4 da manhã para fazer a viagem de 3 horas ao seu trabalho. Após o serviço, ele beberia à noite. Mas este era seu passado, antes de ter que lidar com a Hepatite C.

José contraiu Hepatite C em 1989 por um ato de generosidade. Na época, ele era doador regular de sangue no Hospital Antônio Pedro. Uma noite, José soube que um amigo sofreu um acidente de carro e precisaria de transfusão de sangue. Bêbado de cachaça, José se esqueceu que já havia doado sangue no mesmo dia e foi doar novamente, desta vez para seu amigo que necessitava. A combinação de intoxicação e grande perda de sangue o causou um colapso fora do hospital. Ele foi levado de volta para dentro e passou por uma transfusão, provavelmente esta contaminada com o virus, uma vez que, nesta época, o sangue doado não era checado se continha Hepatite C.

Não era até três anos depois, quando José foi diagnosticado com a doença em 1992, enquanto tentava doar sangue. Foi a primeira vez que seu sangue foi pré-selecionado para Hepatite C, uma nova prática naquela época. Por dezessete anos, ele manteve a doença em segredo da família e evitou o tratamento. Não enxergou a necessidade de tomar interferon porque não sentia os sintomas. Os amigos também o alertaram sobre os efeitos colaterais do remédio, citando relatos de parentes que morreram pelo tratamento. Agora, ele se lamenta de ter ouvido estes conselhos. “Ouvi histórias de pessoas que não sabiam nada sobre os aspectos negativos do tratamento,” diz José. “Eles aprendem a falar, mas não sabem o que estão falando”.

Ele começou a tomar interferon por pressão de seus colegas de trabalho. Disseram que ele teria que começar o tratamento pois temiam que ele entrasse nos estágios crônicos da doença, fatais, se ele não o fizesse. Após tirar licença médica do trabalho, ele começou a tomar interferon semanalmente por 48 semanas. Os efeitos colaterais foram severos, e o levaram a 53kg, problemas de fadiga, insônia, perda de apetite, coceira constante e depressão.

Durante um de seus piores períodos depressivos, ele chegou a ficar oito dias sem dormir. Nada mais parecia atraente para ele. Televisão, música, nada. E não foram somente os efeitos negativos do interferon que causaram a depressão de José. Havia trabalhado desde os nove anos de idade, perder sua rotina de trabalho tirou seu propósito. Ele se sentiu enjaulado dentro de sua casa enquanto vagava sem rumo pelo tratamento. “Era como se estivesse preso em uma caneta, indo à porta e voltando”, disse.

Após o encerramento do tratamento, exames mostraram que a Hepatite C ainda estava lá. Ele esperou até Fevereiro de 2014 para recomeçar o processo. Ainda sente muito dos mesmos efeitos colaterais, mas sua atitude mudou. Para José, os efeitos colaterais são sinais de que a Hepatite C está sendo curada. Ele está confiante de que seu tratamento atual irá combater a doença. “Se você tomar o xarope doce todos os dias, você não cura o resfriado,” disse. “Você tem que tomar o remédio amargo. O mesmo serve para hepatite.”

Apesar de muitos anos ignorando a hepatite C, José agora apela às pessoas para que tomem um posicionamento proativo quanto à própria saúde, “Como diz o ditado, Deus te dá um prato de comida, mas ele não a coloca na sua boca. Você tem que colocá-la em sua boca para viver. O que você está esperando, morte?”

Compartimentalização ajuda José a lidar com os problemas do interferon. Em casa, ele tenta se esquecer de quem ele é no hospital. No hospital, ele deixa temporariamente para trás as tensões de casa. "Eu coloco meus problemas de casa em um saco. Quando chego na porta, substituo esses problemas por novos problemas", diz José. "Quando eu estou no hospital, o meu único problema é que eu tenho a doença."

Com uma mochila preta pendurada no ombro, José faz uma viagem semanal ao Hospital Anônio Pedro, onde recebe seu tratamento de interferon. Ele entra por uma sala de espera na parte da frente, onde ainda se escuta o barulho da Rua Marques de Paraná, avenida agitada em Niterói. A área é repleta de pacientes segurando documentos médicos enquanto esperam seus números serem anunciados em fila no contador digital. Uma gravura de madeira dos dedos de Adão e Deus se tocando – detalhe do famoso afresco de Michelangelo no teto da Capela Sistina – é exibida em uma parede atrás do quiosque onde os pacientes são atendidos pela equipe médica. Enquanto José aguarda, reconhece alguns dos outros pacientes na fila e troca brincadeiras. A voz de José é calma e leve contra o falatório do hospital.

Após passar por duas salas de espera, José sobe as escadas, passando por um piano público tocado por um paciente em espera. Ele chega no quarto frio onde uma enfermeira e um voluntário o cumprimentam por “Pimentão”. A enfermeira retira do refrigerador uma caixa da marca distribuída pelo governo, peginterferon alpha. Após reler os papéis do paciente, a enfermeira prepara a injeção de interferon e José levanta sua camisa. O rosto de José se encolhe enquanto a agulha perfura a pele de seu abdomen inferior.

Após a injeção, ele passa por uma rápida avaliação psiquiátrica, e novamente espera, desta vez para a avaliação física de um hepatologista. Estas duas avaliações são realizadas para que ele possa receber as prescrições dos medicamentos que o ajudam a enfrentar os efeitos colaterais do interferon. No momento em que recebe a prescrição, já se passaram quase quatro horas desde que chegou ao hospital, com apenas 30 minutos dedicados a receber atenção médica.

José adiciona sua prescrição a uma coleção de boletos, recibos e formulários que acumulou no hospital, coloca todos os documentos em sua mochila, e os traz de volta para casa até repetir o processo na próxima semana.