PAULO: DOIS TRANSPLANTES DEPOIS
Texto de Erin Stone
Fotografia de Valda Nogueira
1963. DENVER, COLORADO. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA.
Em 1963, na Universityof Colorado, um menino chamado BennieSolis sangrou até a morte diante dos olhos do Dr. Thomas Starzl durante sua primeira tentativa de transplante de fígado humano. Quatro anos mais tarde e nenhuma cirurgia de transplante de fígado humano bem sucedida (todos os pacientes morreram em menos de cinco semanas), outro desafio iniciaria. O jovem Bennie certamente estava nos pensamentos do Dr. Starzl quando ele soube dos novos transplantes de fígado que deveriam ser feitos – assim comoBennie, todos os sete pacientes eram crianças ou bebês e sofriam de doenças que iriam matá-los de qualquer maneira. Em seu livro de memórias, Starzl, conhecido como o "pai do transplante moderno", escreve, “[as cartas dospais desses pacientes] expressando agradecimentos pelo fato de que tínhamos feito um esforço em vez de deixar seus filhos morrer, sem deixá-los numa situação sem qualquer esperança. Aqueles que se opunham aos transplantes sempre alegavam que essas pequenas criaturas tiveram negadasua dignidade de morrer. Seus pais, entretanto, acreditavam que lhes havia sido dada a glória de lutar. ” Nesta tentativa de 1967, no entanto, as crianças sobreviveram, e três delas viveram o suficiente para mostrar que o transplante de fígado teria grande valor para os pacientes em necessidade.
Um retrato de uma dessas crianças, a pequena Julie Rodriguez, 19 meses de idade na época de seu transplante de fígado, está pendurado em um espaço de honra na casa do Dr. Starzl. Ela teve câncer de fígado, e quando se submeteu ao transplante, em 23 de julho de 1967, havia a esperança de que o procedimento poderia ser usado para curar a ela e a outros pacientes com câncer de origem hepática. Porém, em seguida, o câncer foi encontrado em outras áreas de seu pequeno corpo. Ela passou a maior parte de seu último ano de vida nos parques próximos ao Hospital Geral do Colorado, visitando os cães de laboratório que tiveram sucesso em transplantes de fígado anos antes do procedimento realizado nela. Julie e seus cachorros se tornou um lugar comum, como escreve Starzl: ‘Os adultos falavam calma e francamente com os outros adultos.Julie falava com os cães, que a observavam como se a entendessem".
Somente anos após a cirurgia de Julie o procedimento de transplante de fígado se tornaria uma prática difundida, e mais de uma década depois que a hepatite C que seria descoberta, se tornando a razão para a maior parte dos transplantes de fígado realizados atualmente.
1984. CARNAVAL. IGUABA GRANDE. BRASIL.
A bagunça do Carnaval é mais branda dentro do bar. Paulo toma uma cerveja, numa pausa refrescante do calor e do brilho da festa que ocorre do lado de fora. O álcool desce sobre ele-a calma se instala. Ele solta um suspiro e toma mais um gole.
"Oi, Paulo!" Diz a voz de um homem. Paulo se vira e vê um amigo seu, sorrindo. Ao lado de seu amigo tem uma mulher. Ela é pequena, bronzeada, com cabelo castanho curto. Ela parece que acabou de sair da praia – suas bochechas tem um leve rubor do sol, e tem um olhar feliz, um ar tranquilo que a praia sempre gera. Paulo sorri para seu amigo e acena, mas seus olhos se voltam para a mulher: seu rosto oval, seus lábios macios se transformaram em um sorriso, um sorriso que é verdadeiro e delicado; seus olhos, uma mistura de verde azulado e marrom, com linhas de riso fracos ao redor deles, olhando para ele de forma calma e penetrante, mas não distantesou frios. Na verdade, eles são quentes, tão quentes que Paulo sente uma vibração de nervos.
"Esta é Solange. Solange, Paulo."O amigo em comum os apresentou. Ela estava relaxando na praia quando o amigo parou para dizer oi e sugeriu pegar algo para bebereme se refrescarem. Os três tiveram uma conversa agradável, com muitas risadas. Depois de algum tempo Solange diz que deve voltar para a casa de sua prima. Ela estava lá para o Carnaval, mas vive no Rio de Janeiro- Paulo diz que mora na cidade também. "Por que você não a leva para casa? Estou indo na direção oposta", diz o amigo com um sorriso nos lábios.
Cinco anos apóso encontro em Iguaba Grande, Paulo e Solange celebraram sua união em uma cerimônia alegre, cheia de familiares e amigos. Eles viajam pelo mundo juntos: França, México, Nova York, Miami, Turquia, Portugal e muitos outros lugares. Paulo trabalha no Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) e Solange em uma companhia aérea. Eles amam viver no Rio, onde andam de Jeep, tipo de carro favorito de Paulo. Mas, principalmente, eles se amam. É uma vida maravilhosa.
No ano em que Paulo e Solange celebraram sua união amorosa, mais ao norte, nos Estados Unidos, o vírus da hepatite C acaba de ser descoberto por pesquisadores do CDC. Antes do ano de 1989, a HCV era conhecida apenas como não-A, não-B e não podia ser detectada na corrente sanguínea. E até 1992 não havia um exame de sangue para detectar hepatite C no sangue doado, o que significa que a maioria das contrações do vírus provavelmente ocorreu durante essas doações ou transfusões de sangue. Embora até o final da década de 90 a Hepatite C tivesse sido praticamente eliminada dos bancos de sangue nos EUA e Brasil, ainda há um longo caminho a ser percorrido em termos de aumentar a conscientização sobre a doença. Somente em 2012, o CDC passou a recomendar que qualquer pessoa nascida entre 1945-1965 fizesse o teste para diagnosticar essa doença silenciosa, uma vez que eram as gerações mais prováveis e terem sido expostas ao sangue infectado. A recomendação não é uma exigência, porém, ainda que muitos profissionais da área de saúde não saibam bem como identificar esta doença lenta e mortal, é melhor diagnosticá-la antes que seja tarde demais.
AGOSTO DE 2014. TODOS OS SANTOS, RIO DE JANEIRO.
Paulo e Solange se sentam no sofá branco de seuapartamento de onde têm uma vista geral de Todos os Santos, bairro no lado Norte do Rio de Janeiro. A enfermeira da casa verifica os sinais vitais de Paulo, algo que faz três vezes ao dia. Eles gastam muito tempo assim hoje em dia. Solange tenta tirarum amassado na parte de trás da camisa branca de Paulo, deixando-lhe a marca da mão em suas costas por um momento. Ele se vira e sorri para ela, enquanto a enfermeira envolve o medidor de pressão arterial em torno de seu braço fino. Em sua camisa se lê "Grupo Otimismo", as duas palavras separadas por uma grade colorida. Eles estão esperando a chegada do fisioterapeuta de Paulo, um homem simpático e carismático, que faz exercícios de fortalecimento e de mobilidade com Paulo cinco vezes por semana. Paulo está em processo de recuperação de seu segundo transplante de fígado, realizado no Hospital São Francisco, em março.
Paulo e Solange tomaram consciência da Hepatite C em 2002, quando ele foi diagnosticado oficialmente com a doença. Paulo tinha começado a sentir-se cansado, indisposto. Ele sabia que havia algo de errado, sentia-se mal o tempo todo, como se tivesse um forte resfriado permanente. Ele e Solange começaram a ira médicos, buscando uma explicação. Mesmo depois de consultar cinco médicos, nenhumpôde encontrar o que havia de errado com Paulo. Alguns médicos chegaram a questionar a veracidade dos sintomas descritos por ele – algo que muitos pacientescom HCV não diagnosticadossofrem. A hepatite C ainda não é conhecida como deveria ser, dado que cerca de 500 milhões de pessoas no mundo vivem com este vírus,a principal causa de cirrose e câncer do fígado. Mas os médicos questionaram Paulo: Ele estava apenas tentando sair do trabalho?Solange e ele estavam irritados com essa hipótese. Por que eles iriam mentir? Por que Paulo iriaquerer se sentir assim?
Depois de muitas consultas médicas sem sucesso, eles começaram a procurar especialistas que poderiam ser capazes de reconhecer melhor os sintomas de Paulo e realizar exames mais específicos. Primeiro eles foram a um infectologista, em seguida, um gastroenterologista, e depois a três outros médicos especializados. Ainda que tivesse seu trabalho, e sua mãe idosa para cuidar, Solange acompanhou Paulo em quase todos os seus compromissos. Foi uma época muito difícil, mas eles estavam determinados.
Mas, no dia de 2001 em que Paulo descobriu que Hepatite C era a razão para o seu mal-estar, ele foi sozinho à consulta médica. Solange tinha que estar com sua mãe, mas havia agendado uma consulta para Paulo com um reumatologista, porque ele estava sentindo dor em seus ossos. Suas esperanças não eram altas em relação a descobrir o que se passava com ele. O reumatologista examinou-o como todos os outros médicos fizeram. Paulo sentou-se calmamente. Ele fez exames de urina e de sangue de rotina. Esperando a resposta padrão – que não havia nada errado, que talvez fosse algo em sua cabeça – Paulo aguardou. Mas, desta vez, os resultados foram diferentes. O médico descobriu que seus níveis de aminases eram anormais, e sugeriu que ele fizesse um teste geral para HIV, Hepatite B, Hepatite C.
Até este momento, Paulo nunca tinha ouvido falar de Hepatite C. Ele foi diagnosticado tantocom hepatite B, quantohepatite C. O vírus silencioso havia atingido a Paulo. Os sintomas haviam aparecido décadas depois da provávelinfecção; e a que tudo indicaa hepatite B foi contraída na mesma ocasião que a hepatite C. A doença era tão pouco conhecida pela comunidade médica e pela população em geral que não havia ocorrido a nenhum médico solicitar um exame de diagnóstico, mesmo depois de quase uma década e meia da descoberta da doença. Como os pacientes normalmente sentem os sintomas da doença quando idosos, muitas vezes a hepatite C é diagnosticada já em estado avançado. E Paulo em breve descobriria quejá estava sofrendo de cirrose.
O medo tomou conta dele. A Hepatite C era como HIV, certo? Pelo menos é assim que as pessoas que sabiam sobre isso pareciam vê-lo no momento. Paulo estava preocupado como ele iria ser discriminado. Melhor para manter isto em segredo, e tampouco contar a sua família – e durante meses ele não iria lhes dizer. Mas quanto a Solange, ele poderia, deveria confiar.
Solange estava com sua mãe e irmã quando recebeu o telefonema. Seu celular tocou, era Paulo. Algo em sua voz parecia errado quando disse “oi”. Depois de uma pausa, ele a contousobre os resultados de sua consulta médica. Tudo o que Solange podia sentir era choque e incredulidade. Ela sentiu seu coração bater mais rápido, esua pressão subiu. Ela não sabia o que era hepatite C, mas seu coração sabia que era uma coisa ruim. Solange nunca tinha ouvido falar da doença antes, e todos os médicos consultados pareciam saber tão pouco quanto eles.
Apesar do choque de Solange ter logo se transformado em determinação, sua ansiedade permaneceu. O primeiro obstáculo foi encontrar o tratamento ideal. Paulo iniciou uma série de testes para verificar o estágio da doença, saber em que estado o fígado estava. Sua biópsia não foi boa - Paulo sofria de cirrose hepática. Apenas os testes iniciais levaram um ano inteiro para ocorrer, ainda que tivesse plano de saúde. Para aqueles que não têm plano de saúde privado, como é o caso da maioria dos brasileiros, os exames iniciais por meio do sistema público de saúde podem levar muito mais tempo. Isto significa que, no momento em que começar a fase final da biópsia, o vírus já poderia ter progredido para as fases mais agudas, ou até ocasionado a morte.
No início de 2003, Paulo e Solange iniciarama primeirainvestida contra o HPV que invadiu o corpo de Paulo: non-pegylatedinterferone uma dieta especial, foram os alimentos que Solange prepararia a Paulo ao longo desse primeiro ano. A aplicação do interferonconsistiaem uma injeção no abdómen 3 vezes por semana, que Paulo administrava a si mesmo. Interferon, uma proteína produzida naturalmente pelo sistema imunitário do corpo, interfere (daí o nome) na reprodução viral e desencadeia a resposta imune do corpo. O non-pegylatedinterferoné produzido em laboratório e permanece no corpo por mais tempo. A injeção não era o que preocupava Paulo - era como a sua reação à droga seria. Ele tinha ouvido falar dos efeitos colaterais terríveis que afetavam à maioria das pessoas tratadas.
A primeira injeção anunciou o que viria a caracterizar o seu primeiro ano de tratamento. Poucos minutos depois de tomar a droga, Paulo começou a tremer de frio. Ele cobriu-se com todos os cobertores que pôde encontrar, sufocando-se sob o peso. Ele sentiu que estava literalmente congelando. Durante duas horas, ele tremia incontrolavelmente sob uma montanha de cobertores. Quando o frio finalmente começou a se passar, em vez de sentir alívio, começou a suar. Sua temperatura subiu muito, como se estivesse fervendo sob o sol do deserto. Paulo saiu da cama, e tirou suas roupas.O primeiro dia foi horrível. Nos dias seguintes, ele tomava a injeção e sentia o frio e o calor, mas nada como no primeiro dia. Os órgãos do corpo não lidam facilmente com essas oscilações intensas de temperatura interna, e Paulo começou a sentir dor por todo o corpo conforme o tratamento progredia.
Mas o que acabou por ser a pior sequência do interferon não foram os efeitos colaterais físicos, mas o mental. Ele sentiu que estava ficando louco. Não queria falar com ninguém, seus amigos, sua família, nem mesmo com Solange. Ele não podia inclusive sair da cama, havia entrado em depressão. Os dias das injeções foram os piores. Sua personalidade mudou, ele não era si mesmo – estava ansioso, deixando o nervosismo tomar conta de cada momento que vivia. Ele saía de casa inexplicavelmente irritado. Ele tratava mal ao porteiro, a seu cachorro. A todos. Isso ele não conseguia evitar. Suas emoções venceram.
E a única pessoa, além dele, que sabia o que se passava era Solange. Durante dois meses, ela o ajudou, sozinha, a superar a sua dor, e reagiu às suas mudanças de humor com amor e compreensão. Quando ele estava deprimido e tudo o que queria fazer era dormir, ela assistia TV na sala de estar, nunca deixando-o sozinho. Enquanto ele sentiu tudo o que se possa imaginar, Solange permaneceu ao lado dele, fortalecida pela sua fé em Deus e em sua convicção de que o casal era mais forte junto. Ambos continuaram trabalhando em seus respectivos empregos. Solange se esforçou ao máximo para controlar seu emocional, mas ela não conseguiu parar as reações químicas que o estresse estava causando dentro de seu corpo. A constatação de que Paulo poderia realmente morrer desta doença, e em relativamente pouco tempo, fez seu coração bater muito rápido por muito tempo seguido, fazendo com que ela desenvolvesse hipertensão. Alguns anos mais tarde, ela iria precisar colocar um marca-passo.
Ainda assim, mesmo com Paulo tendo começando seu tratamento, Solange e ele sentiram que não sabiam nada sobre esta doença misteriosa que chegou de repente e mudou totalmente suas vidas. Eles sabiam que deviam confiar nos outros que estavam na mesma situação em que eles estavam. Finalmente, por meio de suas próprias pesquisas, acabaram descobrindo o Grupo Otimismo, um grupo de apoio no Rio de Janeiro para aqueles que vivem com HCV. E dessa forma, se viram cercados por pessoas com as quais poderiam desabafar, pessoas que podiam entender o que eles estavam passando. Eles se identificavam com as experiências dos outros, e seus pensamentos sobre a doença - a solidão, o medo, a falta de conhecimento, a necessidade de sigilo - começaram a mudar também. Seus sentimentos em relação à sua situação transformaram-se – não se tratava de uma coisa terrível e que tudo consome, não iria destruir seu estilo de vida antes de destruir o fígado de Paulo. Eles começaram a aceitar a forma como as coisas estavam. E o tempo seguiria.
Logo depois de entrar para o grupo, Paulo e Solange sentiram a necessidade de retribuir, e passaram a usar seu tempo livre para exercer uma atividade voluntária no intuito de aumentar a conscientização sobre a hepatite C, para ajudar os novos membros do grupo a aprendem sobre o tratamento, ou como simplesmente a lidar com ele. Eles se tornaram militantes da causa. E devido à sua experiência com o grupo e os novos conhecimentos que tinha sobre a sua doença, Paulo finalmente sentiu que poderia contar à sua família, que, para sua felicidade, imediatamente o apoiou. Ele também tomou coragem para dizer a seus colegas de trabalho no BNDES. Um dia, ele levou ao seu escritório pastas do Grupo Otimista que explicavam o que era a hepatite C e as colocou sobre a mesa de cada funcionário da empresa. Todos começaram a se perguntar o que era aquilo. O que é essa coisa chamada hepatite C? Alguns jogaram os papéis no lixo imediatamente, porém outros começaram a ler e se informar. Assim, quando Paulo disse a seus colegas que tinha HCV eles sabiam o que era. Embora algumas pessoas estivessem com medo dele, ninguém o tratou de maneira diferente, ninguém parou de falar com ele. Ninguém tinha medo de tocá-lo.
Paulo teve sorte, seus amigos mais importantes ficaram perto dele. Mas mesmo que ele tivesse uma comunidade tão cuidadosa em torno dele, os efeitos colaterais do interferon continuaram a atormentá-lo. Embora ninguém o tivesse abandonado, Paulo começou a se isolar por causa da depressão, ansiedade e raiva geradas pelas drogas que devia consumir. Solange tentava levá-lo para se socializar, mas muitas vezes ele simplesmente não podia. O interferon tinha uma faca nas suas costas. A dor não deixava o seu corpo ou a sua mente. Ele emagreceu, não conseguia comer. Com o tempo, parou de procurar seus amigos, e alguns deles pararam de procurar por ele.
Um ano inteiro se passou assim. Então ele parou com o non-pegylatedinterferon. Ele não estava curado.
Após sobreviver aos efeitos prejudiciais do non-pegylatedinterferon, tanto Paulo, quanto Solange precisavam dessa pausa. Depois de um ano sem o medicamento, Paulo tentou uma outra estratégia de ataque: uma dose muito mais fortede pegylatedinterferonem que era necessária apenas uma injeção por semana, que era administrada em uma clínica privada paga pelo seu plano de saúde privado. Ele havia recebido o non-pegylatedpor meio do sistema público de saúde e teve que esperar em longas filas para até conseguir sua medicação, e somente depois levá-la para casa e administrá-la a si mesmo. Ao longo do último ano, sem o interferon, os efeitos colaterais sentidos por Paulo haviam diminuído, e ele tinha realmente se sentido muito bem de novo: não sentia muitas mudanças de humor, não tinha tanta depressão, e não sentia muita dor em seu corpo. Mas o vírus ainda estava destruindo seu fígado e se não fosse destruído, Paulo não viveria muito tempo. Então, depois de um ano de folga, ele passou a tomar pegylatedinterferon por 6 meses, e, mais uma vez, Solange e Paulo passaram a enfrentar os efeitos colaterais do medicamento. Todostiveram esperança de que esta seria a cura. Mas, passados seis meses, Paulo ainda não estava livre da Hepatite C. Ele decidiu parar com o interferon-não valia a pena suportar os efeitos colaterais para algo que claramente não estava funcionando. Porém uma coisa havia mudado, parecia que sua cirrose havia estabilizado. Paulo não estava ficando melhor, mas também não estava piorando.
No dia em que soube que a cirrose foi estabilizada, Paulo saiu da clínica se sentindo forte, algoque não sentia há um longo tempo. Queria contar vantagem, ostentar para o mundo sua conquista. Ele ainda precisaria fazer um ultra-som, a cada 6 meses, e uma endoscopia, uma vez por ano, mas não mais interferon. Por agora, era hora de comemorar.
Por um tempo pareceu que Solange e Paulo teriam sua antiga vida de volta. Mas não foi bem isso que aconteceu – a saúde da mãe de Solange piorou e Paulo se sentia cansado, o que motivou sua aposentadoriado trabalho. Eles tinham consciência do privilégio que tinham devido a boa pensão que Paulo recebia do BNDESe que permitiu que Solange parasse de trabalhar para estar com Paulo e sua mãe o maior tempo possível. Esta não era uma situação normal e eles sabiam disso, por isso queriam dar o máximo de si em seu voluntariado no Grupo Otimismo.
Durante este tempo, a vida deles alcançou um certo grau de normalidade, e embora a energia de Paulo não fossecomo antes, pelo menos não tinha que lidar com as injeções de interferon e seus efeitos colaterais. Como qualquer outra pessoa, ele tinha que tomar medicamentos regulares para dores de cabeça ou outras dores corporais.
Mesmo com a estabilidade de Paulo, este período foi difícil para Solange,que se viu dividida entre a responsabilidade de cuidar do marido e de sua mãe. Em 2004, sua mãe havia sido diagnosticada com Mal de Alzheimer. Normalmente, essa doença se inicia de forma lenta, mas não foi assim que ocorreu. Em 2006, a mãe de Solange se sentiu tão mal que ficou internada por três anos, os quais era visitada quase diariamente pela filha. Solange sempre foi próxima à mãe, efoi ela a primeira pessoa a quemcontousobre a doença de Paulo. Mas toda vez que ela deixava Paulo para cuidar sua mãe, ela se sentia culpada. Era muita pressão, sua mãe havia retornado a um estado infantil, chorava por Solange na clínica, recusava-se a comer sem a presença de Solange. Esta situação,junto à preocupação sobre a falta de energia de Paulo, resultou numa hipertensão, em julho de 2009, que levou Solange a passar 10 dias no centro de terapia intensiva. Ela deixou o hospital em um domingo e na sexta-feira seguinte sua mãe faleceu, devido a uma parada cardíaca enquanto ela dormia.
A irmã de Solange teve receio em dizer a ela sobre a morte da mãe em virtude de sua recente hospitalização. Então, no início da manhã de sábado, as irmãs, junto a Paulo, foram para ao hospital sob o pretexto de que elenecessitava pegar alguns exames que ficariam prontos naquele dia, o que era verdade. Quando chegaram ao hospital, Paulo sugeriu que, enquanto esperavam os resultados dos exames, Solange verificasse sua pressão, devido à sua recém saída do hospital. A pressão sanguínea estava um pouco alta, por isso o médico lhe medicou e a colocou em repouso. Durante uma hora, ela descansou. Em seguida, Paulo e o médico vieram e lhe disseramsobre a morte da mãe na noite anterior. Ela ficou em choque, mas os medicamentos mantiveram a estabilidade de sua pressão arterial. E então ela chorou por um longo tempo.
Solange foi se recuperando lentamente do estresse gerado a partir da morte de sua mãe e da doença implacável de Paulo por meio da criação de pequenos artesanatos, como pequenos guardanapos com insetos desenhados ou fazendo pequenos vasos com plantas coloridas. Ela nunca vai se curar completamente da morte de sua mãe, não é algo que se possa superar, mas sim absorver e melhorar com o tempo, como uma cicatriz.
A situação do fígado de Paulo, infligido por Hepatite C, permaneceu inalterada por mais 4 anos após o falecimento da mãe de Solange. Mas, em 2013, Paulo foi diagnosticado com ascite, um quadro clínico em que existe uma elevada pressão nos vasos sanguíneos do fígado e baixos níveis da proteína albumina. Muitas vezes, é uma consequência a longo prazo da hepatite B e/ou C. Paulo precisaria de um novo fígado, por isso, no início de 2013 entrou na fila por um transplante de fígado. Sua MELD scorese manteve abaixo da linha de necessidade, mas quando os médicos também descobriram um tumor no fígado - provavelmente causado por uma Hepatite B ou pelo tratamento com interferonque ele tinha passado, masprovavelmente uma combinação de ambos - sua MELD score ganhou 20 pontos e Paulo foi colocado no topo da lista de transplante. Dois meses depois, ele estava no Hospital São Francisco prestes a receber o fígado de outra pessoa. O tempo de espera habitual é de 1 a 3 anos. Paulo teve um tempo de espera mais curto que a maioria das pessoas, o que não é exatamente uma situação de sorte.
Às 6 horas da manhã do dia 27 de novembro, Paulo e Solange foram juntos ao hospital. Solange saiu do lado de Paulo quando a operação começou, às 11h30. Ela tinha seguido os enfermeiros na preparação para a cirurgia, mas não foi autorizada a ficar na sala durante o ato cirúrgico. Solange rezou na igreja do hospital pelo sucesso da operação. Quando a cirurgia terminou, ela, assustada, observava as enfermeiras em torno de Paulo, que estavasendo levado para a UTI ainda grogue da anestesia. Solange voltou para casa, mas não conseguiu dormir.
No dia seguinte, ela acordou cedo e foi para o hospital, onde Paulo já estava acordado e conversando. A cirurgia tinha sido concluída, mas Paulo teria que permanecer na enfermaria por quase um mês. Em 23 de dezembro, Paulo foi paracasa eaproveitou o Natal junto a Solange. Mas não houve muito descanso para eles, Solange tinhaque ferver todo o alimento de Paulo para matar qualquer bactéria, tinha que ter certeza que ele tomou os remédios na hora certa, além de esterilizar a casa e as cicatrizes da cirurgia. A pressão arterial de Solange às vezes subia, especialmente quando Paulo sentia dor. Ela também se preocupava com a magreza crescente do marido. Ela se sentia feliz nas vezes em que Pauloconseguia conversar ou queria sair, momentos escassos, quando ele estava sem dor.
Mas, em fevereiro de 2014, Paulo começou a sentir uma dor abdominal mais forte do que o habitual. Em meados de março, a dor havia piorado consideravelmente: descobriu-se que seu novo fígado estava vazando bile devido a uma dobra na veia hepática, uma complicação que pode surgir depois de um transplante de fígado. Ele precisava de um segundo transplante e rápido: em menos de uma semana o fluido se acumularia em sua cavidade do estomacale deterioraria o novo fígado, a ponto de colapso total.
Então, à 01:30 do dia 21 de março, uma pessoa morreu e a vida de Paulo foi salva: um novo fígado que combinava com seu genótipo estava disponível. O transplante começou imediatamente. Solange ficou acordadadurante o resto da noite.
Quando o sol estava nascendo na manhã seguinte, o médico chamou Solange e deu-lhe a notícia de que Paulo estava bem.
E agora a história chega aos dias de hoje, um dia típico. Solange está sentada no sofá branco, enquanto o fisioterapeuta conta lentamente, "1, 2, 3, 4", enquanto Paulo coloca os braços paralelo ao chão e depois de volta para baixo com cada contagem. Seus magros membros completam os movimentos graciosamente, mas a cada ida de cima para baixo o rosto de Paulo se contorce de dor. Ele respira, olha para o chão, concentra-se na difícil tarefa de terminar todos os seus exercícios. Ele vai do movimento dos braços para o levantamento de uma das pernas para cima e para baixo, equilibrando-se sobre a outra. Ele não pode completar a terceira rodada e solta um grande suspiro de dor e cansaço. Paulo se senta novamente em uma cadeira antes da próxima sessão de levantamento de pernas.
Solange se serve de bolo e café, tem os olhos fixos em Paulo, e tem em seu rosto uma expressão tensa e dolorosaao veras caretas queseu marido faz. Enquanto ele faz seus exercícios, ela fala da força que eles têm e como sempre têm sido mais fortes juntos. Muitas famílias são destruídas quando um parente é diagnosticado com hepatite C. Mas eles cresceram juntos durante a doença, porque nestes tempos eles precisavam ainda mais um do outro. Ela fala de como elestêm sorte ao se sentarem naquele sofá branco, e estarem tomando café, sob a luz do início da noite que vem das janelas da varanda e iluminam a mesa da sala de jantar junto aos pratos postos à mesa.
Desde o primeiro transplante, Paulo não havia dirigido, uma atividade que ele sempre amou. Mas há duas semanas ele dirigiu, levando Solange para a praia, com as janelas abertas para que o vento quente pudesse passar, e ele não sentiu dor. Solange conta isso com uma leveza no rosto, a mesma reação que teve quando descreveu seu primeiro encontro com Paulo.
A vida que tinham juntos antes da doença pode ter acabado quando Paulo foi diagnosticado com hepatite C, eles já não podiam viajar ou fazer outras coisas que gostavam, mas a doença nunca ganhou. Embora ela ainda esteja nas veias de Paulo até a próxima melhor opção de tratamento, osofosbuvir, se tornar mais acessível, Paulo e Solange continuam juntos. Depois de anos de união no amor, eles vão se casar oficialmente em breve. Todas as coisas que se passaram, a multiplicidade de experiências que moldaram a sua vida devido à doença e à dor, só fortaleceram o amor ea amizade que partilham.
Paulo contempla uma flor em um vaso na varanda, uma pequena e brilhantered-pinkprimrose. Ele fala de como quando se está morrendo, a vida é vista de uma maneira diferente, em que se apreciam os pequenos momentos cada vez mais. Solange se junta a ele na varanda, descansando a cabeça em seu ombro. O ar de inverno no Rio é quente. Na noite seguinte é o aniversário de Paulo, e Solange planejou uma celebração.
No dia especial, quando o sol se põe sobre a cidade, o riso ecoa pela varanda, onde os hóspedes estão sentados: Solange, sua irmã e seu amigo estão em uma mesa; Paulo e seu amigo de infância, Geraldo, em outra. Geraldo e Paulo se encontramno mesmo local ondecresceram, no bairro de Todos os Santos. Eles riem juntos como se fossem crianças de novo, Geraldo aprecia a conversa, tem um brilho nos olhos, e valoriza cada palavra de Paulo; Paulo sorri afetuosamentedas histórias e piadas de Geraldo. Paulo lança olhares para Solange diversas vezes, e cada vez que seus olhares se encontram ambos sorriem, sustentando o olhar do outro por um longo momento.