DR. LUCIO: O CIRURGIÃO

 Texto e áudio por Erin Stone
Fotografia de Lucas Andrade

Dr. Lúcio Pacheco tem um físico menor do que ele parece ter nas fotos que acompanham artigos sobre o seu trabalho ou o seu curriculum vitae. Seu comportamento, no entanto, faz ele parecer um homem muito maior. Ele caminha em passos longos e calculados e tem uma postura perfeita: ombros para trás, pescoço reto. Move-se intencionalmente com calma – à primeira vista, parece ser um passeio de lazer, sem pressa, mas a rapidez com que atinge o outro lado de uma sala prova que esta é apenas uma ilusão de ótica. Seu jeito é calmo; seus olhos atentos. A combinação do seu sorriso quente e ar tranquilo é ao mesmo tempo reconfortante e intimidante. Você pode imaginar que essa combinação dá paz de espírito a um paciente: este homem é um profissional, mas ele também é um ouvinte.

Ele é um cirurgião de fígado – o cirurgião-chefe de fígado, na verdade, do Hospital São Francisco, o maior hospital público do Rio – o que significa que, para sua carreira, ele caminha sobre uma linha fina: uma entre a sobrevivência e morte. É uma linha que pode tornar atraente manter um grau de separação entre ele e seus pacientes, mas essa tentação, Dr. Lúcio sabe, pode criar o maior dos perigos. Sem uma estreita relação com seu paciente, o cirurgião pode facilmente tomar a decisão errada sob pressão.

Fígados podem ser disponibilizados a qualquer momento, e muitas vezes eles chegam com seus próprios problemas: alguns fígados podem estar em um estágio anterior de hepatite C do que os pacientes a quem eles se destinam. Estes são fígados saudáveis suficiente e podem ser os únicos que correspondem ao genótipo do paciente. Assim, o Dr. Lúcio deve conhecer seus pacientes bem. Eles devem saber todos os riscos da aceitação de um fígado, em especial, um imperfeito. E ambos devem concordar que, mesmo que um fígado correspondente ao genótipo do paciente fique disponível depois de anos de espera, se o score MELD (Modelo para Doença do Fígado em Estágio Final, em português) do paciente subiu para um nível que faz com que o risco de cirurgia seja muito grande ou a possibilidade de morte logo após muito alta, ao fim, é o Dr. Lucio que tem a palavra final quanto à possibilidade ou não do fígado ir para um paciente ou outro.

Afinal, tudo se resume a dois resultados possíveis: morrer ou ter uma vida melhor por um pouco mais de tempo pelo menos.

Dr. Lúcio fala calmamente sobre esta grande responsabilidade que ele carrega, e não há tristeza perceptível em seu tom. É difícil ser a pessoa que decide qual dos seus pacientes recebe ou não um fígado para salvar sua vida.

A maneira como você vê a vida muda muito ao saber que você tem uma vida humana em suas mãos. Quando um de seus pacientes morre isso pode ser desastroso, e um monte de gente não vai entender isso. Quando você é sempre bem sucedido, é ótimo, mas quando se trata de transplantes, você não terá sucesso em muitos casos. Você vai ter perdas, e o paciente de transplante tem uma relação muito mais próxima com o médico do que os regulares que você fala uma ou duas vezes por ano.

Cirurgiões de transplante] fazem a cirurgia e seguem a vida de seus pacientes. Às vezes, você conhece o paciente de transplante mais de um ano antes da cirurgia, e você vai segui-lo pelos próximos anos, por toda a sua vida. Isso explica por que é tão difícil perder um paciente durante a cirurgia de transplante. Até hoje eu não posso lidar muito bem com isso. É uma maneira diferente de fazer medicina. Você tem uma vida em paralelo com os seus pacientes, e isso faz com que você exija muito de si mesmo. Vários médicos não podem viver com isso e abandonam essa “vida de transplante”. Os que ficam se tornam pessoas diferentes. Tenho pacientes que conheceram os meus filhos quando eles nasceram e ainda mantenho contato com eles agora, 12 anos depois. Todos esses anos mantemos contato e cuidamos. É diferente de qualquer outra especialidade médica. Não há nenhuma forma de ser um cirurgião arrogante, não há espaço para esse tipo de pessoa. Talvez esse seja o porquê da grande mudança [que os cirurgiões de transplante devem passar por.

−Acima, transcrição do áudio do Dr. Lúcio

 

Tendo feito quase 1.000 transplantes de fígado durante toda sua carreira, Dr. Lucio diz que ele poderia falar sobre momentos que impactaram significativamente sua vida em, provavelmente, metade deles. Suas experiências mais dramáticas foram relacionadas a pacientes com insuficiência hepática fulminante, em particular das crianças:

“Meu primeiro transplante de bebê é agora um adolescente. Ela tinha um ano e meio [quando foi feita a cirurgia]. Ela não tinha qualquer esperança de chegar a dois anos de idade. Mas agora ela tem quatorze anos e é uma menina bonita que pode fazer tudo em sua vida. Este é um dos momentos mais memoráveis a minha vida de transplante”.

Ele sorri, sua felicidade visível nas marcas de expressão dos seus olhos. Ele fala de muitos de seus pacientes – e parece se lembrar de todos. Ele conta a história de uma mulher, agora com 77 anos, que fez a cirurgia quando estava em seus sessenta anos e tem sido capaz de ver o nascimento de seus netos por causa de seu novo fígado. Ela tem que ajudar a criá-los, e ela ainda vive bem.

“Assim, mesmo que [ser um cirurgião de transplante de fígado] seja uma profissão difícil, eu não posso me ver fazendo qualquer outra coisa ... É diferente de qualquer outra especialidade médica.”

Entre toda essa angústia e alegria – através de todas essas vidas – Dr.  Lúcio, e outros cirurgiões de transplante como ele, também deve viver com o fato de que um transplante de fígado não é uma cura. Um transplante de fígado em um paciente de hepatite C só garante uma maior vida útil, não uma vida livre de HCV. Mesmo após a cirurgia, o vírus permanece no sangue e quase todos os pacientes de transplante de fígado HCV-positivos, que representam a maioria dos pacientes de transplante de fígado, serão infectados novamente.

“Então, por que fazemos estes transplantes?”, diz Dr. Lúcio com um encolher de ombros. “Nós fazemos o transplante para tratar o vírus, para esperar por um novo tipo de medicamento. Nós também podemos tentar os tratamentos convencionais [isto é, interferon], porque há pacientes que não respondem ao tratamento convencional antes do transplante e após os transplantes podem ser tratadas com sucesso. Mas nos dois últimos congressos internacionais sobre hepatite C e transplante de fígado, muito se tem falado sobre os bons resultados dos novos medicamentos para o tratamento de pacientes submetidos a transplante de fígado com HCV. Estas drogas são comprimidos, com muito menos efeitos secundários do que a medicina regular. Mas há um grande problema que os torna inacessíveis – o preço”.

Medicamentos orais como sofosbuvir (marca Sovaldi) são a melhor chance para pacientes em estágio avançado da hepatite C, que já passaram por um transplante de fígado e sofreram os efeitos colaterais do tratamento com interferon sem sucessos. Embora Gilead Sciences, a empresa farmacêutica que criou sofosbuvir, tenha anunciado recentemente que iria emitir licenças para vender versões mais baratas de sofosbuvir em 91 países, este passo positivo no sentido da acessibilidade tem um negativo escondido. Os países designados excluem alguns dos países com a grande maioria das pessoas que vivem com hepatite C – como o Brasil, que é um país de renda média com uma das mais altas taxas de HCV no mundo. Assim, podem levar décadas antes do sofosbuvir entrar no mercado como um genérico acessível.

Embora Dr. Lucio esteja esperançoso para que drogas orais como sofosbuvir se tornem mais acessíveis a seus pacientes em breve, ele sabe que isso pode demorar. Ele se acostumou a esses altos e baixos, mas isso não fica no caminho do seu trabalho, embora houvesse mais do que algumas vezes em seus quase 20 anos de profissão que Dr. Lúcio sentiu as pressões do passeio de montanha-russa da "vida transplante" o dominarem.

"Eu pensei em desistir não uma ou duas, mas várias vezes. Agora eu ocupo uma posição delicada. Eu preciso evitar que os médicos mais jovens desistam, e isso não significa que eu não sou afetado pelas perdas. Eu acho que nunca vou ser capaz de lidar com as perdas. Agora eu sofro de uma forma mais interna, porque eu preciso apoiar os médicos mais jovens. Eu preciso manter a equipe funcionando para que possamos atender a outros pacientes que precisam de nós."